sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Testemunho de um ateu em crise.




Testemunho do Escritor e filósofo suíço Alain De Botton-  jornal Il Sole 24 Ore

Depois de ter perdido toda uma série de práticas e de tradições que os ateus consideravam insuportáveis por causa daquilo que   Nietzsche definia de “o mau cheiro da religião”. a sociedade secular se empobreceu injustamente. Enquanto buscávamos nos libertar de ideias impraticáveis, também renunciamos erroneamente a alguns dos aspectos mais úteis e fascinantes da religião.
Eu cresci em uma família de ateus convictos, filho de judeus não observantes que colocam a fé religiosa no mesmo plano da fé no Papai Noel. Meu pai tinha conseguido fazer a minha irmã chorar quando havia tentado extirpar da sua mente a ideia, nem tão enraizada, de que, em algum lugar do universo, se escondia um deus solitário.
Eu tinha oito anos, na época. Se os meus familiares descobrissem que alguém, no seu círculo de conhecidos, nutria secretamente um sentimento religioso, começavam a tratá-lo com a comiseração  que, em geral, se reserva a quem sofre de uma doença degenerativa. A partir desse momento, para eles, era impensável recomeçar a levá-lo a sério. Embora eu tenha sido fortemente influenciado pela atitude dos meus pais, passados os 20 anos, o meu ateísmo me pôs em crise. As dúvidas surgiram quando eu ouvi pela primeira vez as cantatas de Bach e se desenvolveram enquanto eu observava algumas Madonnas de Bellini.
No entanto, foi apenas muitos anos depois da morte de meu pai – enterrado sob uma lápide gravada em hebraico em um cemitério judeu de Willesden, zona noroeste de Londres, porque, detalhe interessante, ele tinha se esquecido de deixar instruções mais seculares – que eu comecei a aceitar o peso da minha ambivalência com relação aos princípios indiscutíveis que me haviam sido incutidos durante a infância.
A minha certeza de que Deus não existe permanecia intacta. Eu me sentia simplesmente mais livre para a ideia de que havia um modo de se aproximar da religião sem ter que aceitar também, por força, o lado sobrenatural; um modo, em termos mais abstratos, de pensar nos Padres sem ofuscar a memória do meu pai. Dei-me conta de que a minha prolongada resistência às teorias sobre o além ou sobre os habitantes do paraíso não era uma justificação suficiente para descartar a música, os edifícios, as orações, os rituais, as celebrações, os santuários, as peregrinações, as refeições em comum e os manuscritos iluminados.
Depois de ter perdido toda uma série de práticas e de tradições que os ateus consideravam insuportáveis por causa daquilo que Nietzsche definia de “o mau cheiro da religião”. a sociedade secular se empobreceu injustamente. Agora, o termo “moralidade” nos causa medo, e, ao pensamento de ouvir um sermão, preferimos dar no pé.
Evitamos a ideia de que a arte pode nos elevar ou ter uma missão ética. Não vamos em peregrinação. Não sabemos mais construir templos. Não temos instrumentos para expressar gratidão. A ideia de ler um manual de autoajuda nos parece estar em contraste com os nossos nobres princípios. Rejeitamos o exercício mental. Raramente vemos desconhecidos cantando juntos. Infelizmente, estamos diante de uma escolha: abraçar a estranha ideia de que existem divindades imateriais, ou abandonar em bloco uma série de rituais reconfortantes, refinados ou simplesmente fascinantes dos quais custamos para encontrar um equivalente na sociedade secular. Talvez, chegou o momento de liberar as nossas necessidades espirituais do verniz religioso que os recobre, embora, paradoxalmente, muitas vezes, é o estudo das religiões que nos fornece a chave para redescobrir e reformular essas necessidades.
A minha tentativa é a de ler as fés, principalmente a cristã, e, em menor medida, a judaica e a budista, em busca de intuições que possam ser úteis na vida secular, sobretudo com relação aos problemas levantados pela convivência dentro de uma comunidade e dos sofrimentos mentais e físicos.
Longe de negar os valores do secularismo, a minha tese é de que, muitas vezes, secularizamos mal, isto é, enquanto buscávamos nos libertar de ideias impraticáveis, também renunciamos erroneamente a alguns dos aspectos mais úteis e fascinantes da religião.

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