Gostaria, pois, de compartilhar a substanciosa entrevista
concedida em Roma pelo Pe. Bernardo Cervellera, do Pontifício Instituto das
Missões Estrangeiras, à revista de cultura católica Catolicismo (nov. 2011).
Considerado o maior especialista romano sobre a Igreja na China, o Pe.
Cervellera foi Professor da Universidade Beida, em Pequim, foi diretor da Agência
de imprensa vaticana “Fides” e atualmente é o diretor da prestigiosa Agência
AsiaNews:
Pe. Cervellera
“ Catolicismo — Circularam ultimamente muitas notícias sobre
um esfriamento das relações entre a China e o Vaticano. O que há de certo
nisso?
Pe. Cervellera — Sou convidado algumas vezes a participar de
encontros com industriais italianos que me perguntam sobre a China. Quando me
refiro às perseguições que sofrem lá os católicos, ficam surpresos. Porque hoje
muitíssimas pessoas possuem uma imagem turística da China, aliada a uma noção
confusa oriunda de notícias que informam sobre a quantidade de arranha-céus
construídos nas grandes cidades, da existência de grande número de automóveis
Ferrari, do aumento da renda média do trabalhador chinês, etc. Pensam tais
pessoas que, pelo fato de a China estar apresentando aparentes mudanças do
comunismo para o capitalismo, a situação dos direitos humanos também se
alterou. Acompanho há 20 anos a situação chinesa e posso afirmar que, se do
ponto de vista geográfico muita coisa mudou (novas autopistas, condomínios,
trens, etc.), por outro lado, a perseguição religiosa manteve-se sempre
constante.
Houve há poucos meses sagrações ilícitas de bispos, ou seja,
sem mandato papal. Nos últimos quatro anos ocorreram cinco dessas sagrações. Alguns
bispos débeis ou timoratos foram obrigados a participar das mesmas, tendo sido
conduzidos à força pela polícia. Isto é algo que não se registrava desde a época
da Revolução Cultural dos anos 50 e do início do maoísmo. Época na qual se
tentava criar uma igreja nacional composta de padres e bispos sob a direção do
Partido Comunista Chinês. Na teoria, uma igreja independente de Roma; na
prática, dependente do governo comunista. Perguntei recentemente a um católico
chinês sobre a mudança de rumo do governo. Ele simplesmente respondeu-me
dizendo que para os estrangeiros parece que a China mudou, quando ela, de fato,
sempre foi assim. Há uma perseguição contínua, cuja extensão pode ter variado
um pouco, mas nunca cessou desde que os comunistas tomaram o poder em 1949.
Catolicismo — Os bispos chineses fiéis ao papado continuam
sendo presos?
Pe. Cervellera — Por uma sugestão de Stalin a Mao Tsé-Tung,
o Partido Comunista Chinês quis inicialmente exterminar a Igreja, mas isto não
funcionou. Criaram então, em 1957, a Associação Patriótica, a qual ficou
encarregada pelo Partido Comunista de controlar a Igreja. Já o Papa Pio XII
condenou essa associação em 1958 e declarou que os bispos que sagrassem outros
bispos escolhidos por ela estavam excomungados.Todos os bispos que se opuseram,
nos anos 50, a essa manobra comunista, terminaram na prisão, sendo obrigados a
permanecer 20 ou 30 anos sob o regime de trabalhos forçados. Por exemplo, o
bispo de Xangai, D. Ignatius Kung; o bispo de Booding, D. José Fan Xueyan; o bispo
de Cantão, D. Dominic Tan Yee-Ming, e tantos outros. Há ainda vários bispos
“clandestinos” — ou seja, que se negam a fazer parte dessa Associação
Patriótica — os quais se encontram nas mãos da polícia. É o caso, por exemplo,
de D. Jacobo Su Zhimin, há 15 anos nessa situação. Ele está desaparecido e sem
sinais de vida. E isso só por não querer fazer parte da Associação Patriótica.
Também o bispo de Yixian, D. Cosme Shi Enxiang, encontra-se nas mãos da polícia
há 10 anos. De forma totalmente ilegal, apesar das poucas leis existentes na
China. Estamos preocupados, porque muitos bispos que a polícia fez desaparecer,
reapareceram depois… mortos.
Foi o caso, entre outros, de D. José Fan Xuyean, bispo de
Booding. Após passar três meses nas mãos da polícia, em 1992, seu cadáver foi
deixado diante da porta de sua casa, envolto em papel celofane. Seus familiares
constataram que ele tinha sido torturado brutalmente, a ponto de ter uma de
suas pernas quebrada. Era um ancião de 90 anos, que já havia passado 32 anos na
prisão.
Há poucos anos ocorreram outras mortes. Em 2007, alguns
meses antes das Olimpíadas (esta celebração da modernidade da China…), um dos
prelados da província Hebei, D. Giovanni Han Dingxian, bispo de Yongnian,
reapareceu num hospital após seis anos de detenção. Seus familiares
encontraram-no moribundo. De fato, ele faleceu às 23 horas daquele mesmo dia.
Seu corpo foi cremado e sepultado às 5 horas da manhã, sem a presença dos
familiares. Os fiéis julgam que a cremação foi efetuada para evitar as provas
que derivariam da autópsia.
Catolicismo — Qual é a situação atual dos bispos
“subterrâneos”, considerados “ilegais” pelo regime comunista?
Pe. Cervellera — Existem na China 37 bispos “subterrâneos”,
ou seja, que não pertencem à igreja oficial, controlada pela Associação
Patriótica. Esses bispos encontram-se em prisão domiciliar; estão isolados, não
podem exercer seu ministério. O mais velho deles é o bispo de Zhengding, D.
Julio Jia Zhiguo, muito estimado pela população. Ele mantém 200 meninos
abandonados, sobretudo deficientes físicos, que não são aceitos por motivos
culturais. O bispo lhes proporciona roupa e alimento, cuida dessas crianças com
a ajuda de algumas freiras. Ele é vigiado dia e noite por quatro policiais,
para que não possa sair de casa nem se encontrar com quaisquer pessoas. Sua
“culpa”: não querer renunciar a seus vínculos com o Papa. Muitas vezes é preso
e levado para “férias” forçadas, a fim de receber doutrinação política do
Partido Comunista sobre a grandeza de seu programa e de como se deve dar adesão
ao mesmo.
Atualmente até os bispos da igreja oficial — de obediência
ao governo — estão na mira do Partido Comunista. Não é uma perseguição na qual
eles são conduzidos a campos de trabalhos forçados ou fuzilados, mas são
controlados. Desde 2006, quando das novas sagrações ilegais, eles são seguidos
e controlados em suas viagens pastorais. Por que este medo do governo? É que,
graças ao trabalho dos Papas, quase todos esses bispos da igreja oficial —
sagrados mediante intervenção do partido e sem permissão papal — escreveram ao
Vaticano pedindo perdão pela sua situação, tendo sido reintegrados na comunhão
católica. Quando o Papa Bento XVI escreveu uma carta aos católicos da China, em
2007, ele a enviou indistintamente aos bispos da Igreja Católica, não fazendo
distinção entre aqueles que eram fiéis e os que não eram.
Catolicismo — Se há tantos bispos que tiveram de pedir
perdão ao Papa por estarem ligados à Associação Patriótica, por que o governo
tem tanto medo deles?
Pe. Cervellera — Porque a Igreja Católica chinesa é hoje
muitíssimo mais unida que no tempo da Revolução Cultural ou nos anos 80. Este é
o ponto importante e o que explica o aumento da perseguição. A unidade da
Igreja na China é um dos grandes fracassos do Partido Comunista Chinês. Nos
anos 50 eles queriam destruir todas as religiões. Convencendo-se de que não o
conseguiam, tentaram então criar religiões nacionais — seja a budista, a
islâmica, ou igrejas protestantes nacionais. E, transcorridos 60 anos, na
prática, a Igreja Católica é hoje mais unida do que antes. É por isso que a
Associação Patriótica — cujo novo presidente é paradoxalmente um bispo em
comunhão pessoal com o Papa — deseja a sagração de bispos ilegítimos, a ponto
de forçar um bispo excomungado a ser presidente de um organismo subordinado a
ela, a conferência dos bispos da igreja patriótica. Este é um modo de misturar
as coisas, criar divisão e confusão generalizada.
A situação é muito dura. Os bispos oficiais [subservientes
ao regime] e os “subterrâneos” [obedientes a Roma] são muito controlados.
Fiscalizam-se todos os seus encontros e discursos, são levados à força a
reuniões onde os obrigam a ouvir dissertações sobre a política do partido, além
de serem isolados, para não receberem o reconforto e o apoio da Igreja.
Em maio, por ocasião da festa da Padroeira da China — Nossa
Senhora de Sheshan, próximo de Xangai — Bento XVI pediu orações pela Igreja
naquele país e, sobretudo, pelos bispos, para que não defeccionem. E para que
não sejam derrotados pela tentação de oportunismo, ou seja, de uma vida cômoda
e de não perseguição. Uma vida tranquila é melhor do que uma vida isolada. E a
Associação Patriótica exerce esse tipo de perseguição, vencendo o coração pelas
suas debilidades. Infelizmente, há pessoas que por oportunismo desejam se
tornar bispos, ou seja, ser promovidas a tais pelo partido, receber honrarias,
uma residência cômoda e nova e, de vez em quando, lembrar-se do Papa na oração.
É preciso rezar muito por elas.
Catolicismo — Poder-se-ia então afirmar que o Partido
Comunista está preocupado porque não consegue controlar a Igreja?
Pe. Cervellera — O partido não está tão preocupado com o
controle da Igreja Católica quanto com a difusão dela. O cristianismo
difunde-se muitíssimo na China. E isso não obstante serem necessários três a
seis meses de catecismo, assistência à missa, participação nas orações, etc. Há
anualmente pelo menos 150.000 adultos – não nos referimos às crianças – que se
fazem batizar. Enquanto o governo prega que a riqueza é o mais importante, as
pessoas procuram a vida espiritual. Este é o motivo da perseguição. Enquanto os
direitos humanos forem comer, beber, vestir, etc., o partido pode controlar.
Ele pode permitir que se construa uma casa ou que se vista com roupas Armani;
permite a satisfação das necessidades materiais. Mas quando surgem necessidades
espirituais, o partido não sabe o que fazer e teme que as pessoas escapem de
seu controle. Para os comunistas, as religiões devem ser controladas ou
eliminadas. Isto cria problemas para o partido, porque na China está ocorrendo
um grande renascimento religioso. Nós afirmávamos isto anos atrás e não nos
davam crédito. Hoje se trata desse tema com frequência, existindo abundante
documentação a respeito. Fala-se do regresso de Deus à China. As pessoas
procuram algo mais do que o materialismo.
Catolicismo — Que tipo de pessoas se convertem ao
catolicismo?
Pe. Cervellera — Todo tipo de pessoas. Mas existe uma
categoria que chama especialmente a atenção. Convertem-se ao catolicismo antigos
— e dos mais ardorosos — membros do Partido Comunista, que estão desiludidos
pelo que ali se faz. Eles vêm que estão nas mãos de um grupo que os utiliza
para ganhar dinheiro — com o qual, por sua vez, financiam o partido para que
este controle o povo. Notam haver uma grande simbiose entre capitalismo e
comunismo. Estão desiludidos com a insensibilidade do partido diante das
necessidades das pessoas. O salário dos trabalhadores é dez vezes menor que no
Ocidente, não existem auxílios de seguridade social, etc. Estes desiludidos
aproximam-se da Igreja. Por exemplo, um ativista que criou um sindicato não
oficial e que havia estado no massacre da Praça de Tiananmen tornou-se
católico.
Catolicismo — Existe alguma possibilidade real de a Igreja
mudar a situação na China?
Pe. Cervellera — O que teme o partido é que haja uma fusão
entre a busca dos valores espirituais e a tensão dentro da sociedade. Existe
nisso algum nexo. Esta tensão aparece em situações que são relativamente pouco
conhecidas, mas na China há anualmente 180 mil rebeliões sociais. O governo as
chama de “incidentes de massa”. São pessoas que se rebelam devido às
injustiças, porque confiscaram suas casas, contaminaram os rios e não há água
para beber, por problemas de transporte, saúde, etc.
Os ex-comunistas que se tornam religiosos procuram alguma
dignidade para as pessoas, e o fundamento para isso é religioso. O homem possui
direitos inalienáveis. Ao Estado incumbe reconhecê-los, e não se arvorar em
deter poderes para concedê-los ou não. Se o homem não tivesse uma dimensão
religiosa ele seria apenas um objeto nas mãos do poder. As pessoas procuram os
fundamentos espirituais do direito do homem. Um advogado cristão que defendia
pessoas perseguidas por sua fé, foi sequestrado pela polícia, torturado,
colocado em situação de isolamento, sem poder comer, etc. Ao ser liberado, em
junho último, ele denunciou tudo quanto sofreu. Isso antes não acontecia. As
pessoas começam a denunciar os maus tratos recebidos e perdem o medo que
tinham. Para o governo, esta mistura de rebelião social aliada à busca de
fundamentos religiosos e de coragem pode ser fatal.
Catolicismo — É conhecido o dito de Tertuliano de que “o
sangue dos mártires é semente de cristãos”. O Sr. conhece algum caso na China
que nos pudesse contar?
Pe. Cervellera — Recentemente entrevistei um chinês que
acabava de se converter ao catolicismo. Eu queria saber o que o havia levado a
abraçar a fé. Ele contou-me que tudo começou quando a polícia deteve um de seus
vizinhos. Intrigado sobre o motivo da detenção de alguém tão tranquilo e normal
como esse vizinho, foi perguntar aos familiares dele. Estes lhe disseram que
havia sido preso por ser católico. Isto chamou sua atenção, pois o que podia
uma fé ter de importante quando o mais valorizado na sociedade era possuir
bem-estar material, comodidades e reconhecimento social? Como não entendia,
começou a estudar os fundamentos de nossa Religião e constatou que a fé é o bem
mais importante da vida. É por ela que arriscamos tudo o que temos. É a mais
preciosa pérola. Como resultado, decidiu se converter e foi batizado. O
martírio de um católico conduz à conversão de outros.“
Perseguição à Igreja: fruto do pragmatismo
É curioso que aqueles mesmos que se referem, de boca cheia,
ao pragmatismo dos dirigentes chineses parecem não se perguntar algo de muito
importante: por que motivo os dirigentes comunistas, que demonstram pragmatismo
em fazer certas mudanças no sistema econômico, continuam a perseguir de modo
brutal e inclemente os católicos? Não fará isso também parte do seu
pragmatismo? Não verão os dirigentes comunistas chineses nos valores
religiosos, morais, culturais e sociais representados pela doutrina do
Evangelho uma ameaça ao seu projeto de poder materialista e neo-imperialista?
Em vez de nos mostrarmos tão inconsequentemente eufóricos e
desprevenidos diante das mudanças da China, aceitando essa invasão branca dos
capitais, do comércio e da diplomacia chineses, não seria interessante
questionarmos o verdadeiro sentido de toda essa transformação e do tão
decantado pragmatismo chinês?
Para os católicos, creio, esse questionamento
não constitui
apenas um interesse, mas um dever. Afinal, nossos irmãos na Fé
são os mártires de nosso século. Na China, as mudanças não mudaram uma
realidade trágica para os católicos. Este martírio, curiosamente, é geralmente
silenciado. Parece-me um dever de quem tem Fé preocupar-se com o destino dos
irmãos
nessa mesma Fé. Por isso também os convido a difundir este
post de todas
as formas possíveis, para que a realidade chinesa
seja inteiramente conhecida.
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